PERIÓDICO DE DIVULGAÇÃO DO ESPIRITISMO PRÁTICO
CARTA DE ALLAN KARDEC
16/03/2021

CARTA DE ALLAN KARDEC AO SR. ÉMILE SABÓ

 

"A abnegação da personalidade, o interesse da coisa acima do interesse do indivíduo, tal é o caráter essencial do verdadeiro Espiritismo que deve fazer calar todas as mesquinhas rivalidades do amor-próprio, todos os ciúmes, todas as ambições, todas as pretensões à superioridade individual." Allan Kardec 

 

A Equipe de redação da Revista Espírita - Periódico de Divulgação do Espiritismo Prático, achou por bem tomar para si mesma os conselhos e orientações dados por Allan Kardec ao Sr. Émile Sabó, de Bordeaux, quando este iniciou a publicação do periódico: La Ruche Spirite Bordelaise (A Colmeia Espírita Bordelesa).

Para termos os conselhos do Mestre sempre sob os olhos, traduzimos a carta escrita por ele, inserida no primeiro número daquele periódico, em junho de 1863, e a publicamos em nossa Revista para nos servir de guia.

"Aos senhores Diretores da RUCHE SPIRITE BORDELAISE[1]

Senhores e caros irmãos espíritas,

Vós me pedis alguns conselhos relativamente à publicação espírita periódica que vos propondes a fazer em Bordeaux, e perguntais sobre a questão da oportunidade como sobre outras questões de detalhes. É com zelo e solicitude que atendo ao vosso desejo, que vejo como um penhor de vossa firme intenção de caminhar sob o mesmo estandarte que flutua hoje sobre os diversos pontos do globo, e a cada dia recruta novos e numerosos partidários. Aplaudirei sempre todas as publicações que tenham por objetivo a manutenção da unidade de princípios pela propagação das grandes verdades espíritas geralmente admitidas, quando forem concebidas de maneira a fazer produzir frutos, como repudiarei aquelas que fossem de natureza a produzir um efeito contrário, ou que tendessem a semear a divisão entre os adeptos, em vez de aproximá-los; os primeiros têm por objetivo espalhar a luz, os outros lançam a perturbação, a incerteza e a obscuridade.

O Espiritismo tem um farol que aquele que o tomar por guia não se desviará, que é a máxima: fora da Caridade não há salvação; divisa essa que ligará um dia todos os homens, fazendo calar as dissensões religiosas e outras, porque todos compreenderão que, sem a Caridade, eles não podem esperar a paz neste mundo, nem a felicidade no outro. Vossa sabedoria, senhores, vossa fé sincera, e as provas de zelo e de devotamento que tendes dado, e que eu mesmo pude apreciar durante minha estadia entre vós, são a garantia de que essa máxima será vossa regra invariável na obra que empreendeis.

Bordeaux, vós o sabeis, desde muito tempo foi sinalizada como uma das principais cidades de onde o Espiritismo deve irradiar pelo midi da França; essa previsão se realizou pela rapidez com a qual a doutrina aí se propagou e pelos numerosos rebentos que ela produziu em seus arredores. Seu lugar doravante está marcado na história do Espiritismo, onde serão inscritos com honra os nomes dos primeiros e dos mais zelosos defensores da causa. Seria, pois, útil que esse importante centro tivesse sua publicação especial, como Lyon tem a sua no jornal La Verité, como Turin e Viena, na Áustria, terão também a sua. Vossa coletânea pode prestar eminentes serviços se se mantiver à altura do objetivo a que se propõe; sobretudo se for dirigida, como não o duvido, com um sentimento de perfeita abnegação pessoal. A abnegação da personalidade, o interesse da coisa acima do interesse do indivíduo, tal é o caráter essencial do verdadeiro Espiritismo que deve fazer calar todas as mesquinhas rivalidades do amor-próprio, todos os ciúmes, todas as ambições, todas as pretensões à superioridade individual. Concebida e executada com esse espírito, vossa coletânea não poderá deixar de ter as simpatias dos verdadeiros espíritas, dos espíritas de coração que veem as questões de princípio, os serviços prestados, antes das questões de personalidade. Vossos primeiros passos serão penosos, é preciso estar prevenidos; talvez exijam sacrifícios, mas com perseverança triunfareis dos obstáculos inseparáveis de todo começo; digo mais, dos entraves que os invejosos não deixarão de vos suscitar.

Permitais-me agora, para responder ao vosso desejo, alguns avisos sobre as matérias que serão tratadas em vosso jornal. Já compreendeis a necessidade de fazer uma escolha escrupulosa das comunicações que serão nele inseridas, e a esse respeito chamo a vossa atenção sobre um artigo do último número da Revista Espírita[2]. Seria grave erro publicar levianamente tudo o que vem dos Espíritos, pois entre eles, como entre os homens, há-os de todos os graus de capacidade e de saber. Portanto, é preciso estar atento, na escolha das comunicações, à forma, a fim de não dar razão à crítica; ao fundo, quanto ao grau de instrução que elas encerram, e à oportunidade, pois não se deve esquecer que há comunicações cuja publicação seria intempestiva. Não sejais menos circunspectos sobre os nomes com os quais elas são assinadas, e jamais deis esses nomes como absolutos. A comunicação é boa ou má, digna ou indigna do nome que a assina? Eis toda a questão. Sabeis, como eu, que com bastante frequência o nome não é senão uma indicação da categoria à qual pertence o Espírito; seria, então, pueril fazer desse nome uma questão capital e objeto de discussão ociosa.

Uma parte não menos essencial é a da polêmica que provavelmente será atraída pelas circunstâncias. Conheceis minha visão a esse respeito; resumi-la-ei em algumas palavras: moderação, prudência, caridade para com todos. Deixemos aos nossos adversários o triste monopólio das injúrias e dos grosseiros personalismos, e lembremo-nos sempre que a violência é uma prova de fraqueza, enquanto a calma é uma prova de força. É bom refutar os erros e as calúnias, mas limitando-se a opor os fatos verdadeiros aos fatos errôneos, sem azedume nem acrimônia, evitando as polêmicas sem fundamento, que não podem convencer os obstinados de partido tomado, e fariam perder um tempo que pode-se empregar mais utilmente.

É supérfluo vos recomendar a abstenção absoluta no que concerne à política e à economia social, que vosso objeto vos proíbe; porém, há outro ponto sobre o qual a abstenção não é menos necessária; quero falar das questões dogmáticas além daquelas que são tratadas no Livro dos Espíritos. É preciso jamais perder de vista que o Espiritismo não planta sua bandeira no território de nenhum culto especial; que, antes de tudo, ele é uma doutrina filosófica que a ninguém se impõe e deixa cada um livre em sua crença; que ele se desviaria de seu objetivo se se fizesse o defensor de tal ou tal seita religiosa, porque então ele manteria o antagonismo que ele tem a missão de apagar. Se ele religou tantos sectários opostos, é porque ele mesmo não é uma seita e se manteve num terreno neutro. É importante não se deixar arrastar pelas sugestões daqueles que gostariam de fazer com que ele sirva em proveito de ideias exclusivas, empurrando-o por uma via que não é a dele. Destruição do materialismo, do egoísmo e do orgulho, moralização das massas pela fé no futuro e na bondade de Deus, união dos homens pelos laços da caridade, tal é sua missão; ela é bastante grande e bastante bela para não precisar buscar outra, que só serviria para levantar conflitos inúteis. Ao contrário, dedicar-se a provar que o Espiritismo, dirigindo-se aos que em nada creem ou que duvidam, e não aos que têm uma fé que lhes basta, não retira ninguém de suas crenças e não busca perturbar nenhuma consciência. Se se quiser, em absoluto, que isso seja uma religião, pode-se dizer que é a religião do grande número daqueles que não tinham nenhuma, e que, graças ao Espiritismo, terão uma, isto é: a fé em Deus e na imortalidade, em vez de não crer em nada e viver apenas na matéria. Não seria demasiado recomendar-vos que fiqueis firmes e inabaláveis dentro desse limite.

Um ponto não menos essencial é a linha de conduta a adotar no caso em que divisões viessem a surgir entre os espíritas ou entre os grupos; essa linha está bem traçada pelas máximas fundamentais da doutrina. Em tais casos, se se quiser saber de que lado eu me colocarei, refiro-me ao que já disse a esse respeito na brochura sobre minha viagem em 1862[3], páginas 40 e 41; minha regra de conduta está ali toda traçada. A opinião das pessoas imparciais estará sempre do lado onde houver mais caridade, abnegação e indulgência; a moderação de uns fará sempre contraste com a acrimônia e a hostilidade dos outros; não ser o primeiro a jogar a pedra é certamente um mérito; não retribuir quando ela nos for atirada é um mérito ainda maior, que Deus leva em conta se os homens não o souberem reconhecer.

O homem vulgar vê as coisas terra à terra; ele se ofende com tudo, é afetado por uma palavra; um nada é para ele uma montanha; o verdadeiro espírita vê as coisas de tão alto, que para ele uma montanha não passa de um grão de areia; para ele, a verdadeira vida não é aqui embaixo onde ele sabe que está apenas de passagem: eis porque se preocupa pouco com os incidentes da rota; sua fé no futuro lhe couraça contra as decepções e os ataques da malevolência.

Pleno de confiança na pureza dos sentimentos que presidem à fundação da Ruche spirite Bordelaise, eu não duvido que seja fácil aos seus diretores mantê-la na via mais própria a conciliar-lhe os sufrágios de todos os homens de coração.

Tal é, senhores e caros irmãos espíritas, o programa que submeto à vossa apreciação, e ao qual acrescento a expressão de meus bem sinceros agradecimentos pelo testemunho de deferência e de simpatia que me haveis dado nesta circunstância.

Vosso bem afetuoso e devotado irmão espírita,

Allan Kardec

 

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[1] Traduzido do original francês pela equipe de redação da Revista Espírita - Periódico de Divulgação do Espiritismo Prático. 

[2]  Revista Espírita, maio de 1863 - Exame das comunicações mediúnicas que nos enviam.

[3] Viagem Espírita em 1862 - Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos espíritas de Lyon e Bordeaux - Discurso III.